Por Thatiana Verthein
Sentada
em frente a essa folha em branco, tentei resgatar na memória qual teria sido
meu primeiro contato com a leitura, percebi em meio ao devastador mergulho
interior que nunca tinha atentado para isso: qual o primeiro livro que li?
Confesso que fiquei um tanto frustrada, pois não consegui lembrar. Concentrei-me
e viajei a um tempo em que era engolida por estantes gigantescas de livros
sobrepostos em pilhas tortuosas na biblioteca da mamãe. Achava estranho que ela
guardasse tanto papel. Atinava se os livros mais altos, inacessíveis a mim, não
seriam de certa maneira proibidos por algum motivo. Mamãe era leitora assídua,
sempre a vi lendo: lia no quarto, na sala e até no banheiro. Os livros eram uma
espécie de prótese, presos no lugar das mãos. Ficava até curiosa do que ela
escondia naquelas páginas que devorava diariamente. Contudo, mesmo sem saber
ler, eu adorava inventar histórias, a maioria delas de terror para apavorar
minhas irmãs mais novas. O encantamento de vê-las acreditar naquela realidade
que havia criado, de colocar-lhes medo com personagens que eu mesma construía
dentro da minha cabeça, era gozar da magia de existir, de estar no mundo.
Vivia
numa sociedade em que as práticas de adestramento das crianças para o futuro
mercado de trabalho chegavam a níveis assustadores (qualquer semelhança com o agora, não é mera coincidência). A classe média ancorada
numa educação conturbada, na qual as crianças tinham negado o direito à
brincadeira, ao sonho da infância. A lapidação dos pequenos por cursos
carregados de responsabilidades em detrimento do universo lúdico e com isso, do
bem estar físico e psicológico. Tenho imensa gratidão a minha família pela minha
formação, sempre fui livre, a leitura nunca me assombrou, não houve cobranças, tudo
aconteceu de maneira orgânica, quando me dei conta estava lendo sedenta.
Recordo a vida recheada de fantasia, era
apaixonada pelas histórias de guerra do meu avô João, contos de necessária
crueza, regras de sobrevivência, explosões e as sofisticadas estratégias de
combate das arrepiantes narrativas. Papai também era um exímio contador de
histórias, porém as suas eram mais leves, em geral, aventuras e anedotas da
cidade nova, lembranças da casa em que lhe apetecia ver as filhas nascer e crescer. O
mais interessante é que toda essa memória afetiva vai se tornando verdade, como
se alcançasse, eu mesma, o sabor de ter vivido essas histórias.
Cresci
amando aventuras, gostava de acampar, viver próxima à floresta. Decidi então fazer
Engenharia Florestal na Rural, um curso que pareceu a primeira vista, atender
meu desejo de trabalhar com plantas medicinais, de viver desbravando lugares
inóspitos. Em 2004 ingressei na Universidade Rural. Infelizmente, logo no
primeiro período tive a sensação de que não era aquilo, embora os professores
fossem maravilhosos, os recentes amigos incríveis e as leituras interessantes.
Mesmo já tendo tomado minha decisão de abandonar o curso de engenharia, permaneci
até 2006 naquele mundo singular. O paradoxo: foi no curso de engenharia minha
iniciação na Literatura. Deixe-me explicar melhor, acontece que minha mãe era
leitora de filosofia, sociologia, psicologia... E sendo filha de peixe, essas
eram também as minhas leituras. Na verdade, foram os Pré-socráticos que
despertaram meu interesse pela natureza. Mas quando uma amiga ruralina me
emprestou Cem anos de solidão, de
Gabriel García Marquéz, minha vida se descortinou diante dos meus olhos como um
filme, tive a consciência aguda do que queria naquela leitura. Na época já
pensava infinitas histórias, só pensava. E a partir daquela experiência,
comecei a escrever, escrever para reviver as histórias que contava para
assustar minhas irmãs, escrever para saborear as histórias de papai e vovô,
para sentir a vida com ternura.
Sem
a menor estranheza e com a alma profunda renasci no mundo da Literatura, como
se estivesse caminhando sonâmbula e de repente pelas vias mágicas do realismo
maravilhoso acontecesse o resgate de um desejo adormecido, que morava dentro,
algo que eu realmente queria fazer de mim mesma. É claro que na escola tinha
ouvido falar de Literatura, porém, estudei em colégios cartesianos, onde o
ensino de Literatura era apenas uma ponte para o vestibular. E como minha opção
era Engenharia, tive o privilégio (meu pensamento na época) de simplesmente ignorar
as matérias que não fossem química ou biologia, minhas específicas. A “vida do
lá fora” era muitíssimo mais interessante que a escola, já que lá dentro era
tudo tão previsível e sem emoção devido à impetuosa legenda: viver para o
vestibular! O melhor seria uma mentira, mas foi assim, eu odiava a escola. Por
outro lado, amava ler e tirava ótimas notas, o que fez com que minha mãe não
soubesse que eu nunca ia às aulas.
Agora
percebo que esse dissabor que tive na época da escola teve certa importância,
porque acredito que pessoas que participaram do mesmo sentimento pensaram e
desenvolveram, melhor ainda, continuam criando novas formas de trabalhar com o que amam. O verdadeiro mestre ama o que
faz e quando ensina isso fica explícito em seus olhos e gestos. E por mais que
os estudantes não tenham tanto afeto por aquela matéria específica, eles podem
sentir a gravidade de uma visão holística das disciplinas escolares. E assim a
sala de aula transforma-se num espaço de criação e atividades de apreciação. O
aprendizado daquele mundo suscita no imaginário do aluno, que se aproxima do professor
com prazer, não mais o encarando como um estranho. Nesse processo de identificação,
encontra autonomia para aplicar o conhecimento adquirido conscientemente em
diferentes contextos. Inserindo esses aprendizados em sua vida prática,
instigado pelo potencial de transformação da realidade. O aluno amadurece ao
perceber subjetivamente, e em certa medida, construir
uma ideia do mundo que está a sua volta.
Interpretar e avaliar criticamente as relações sociais é uma tarefa
árdua, mas imprescindível para nossa formação docente, pois é assim que as
pessoas interagem entre si e com as coisas que elas encontram, acordo capaz de
tornar a troca possível e eternizar o aprendizado que nesse mundo tão rico,
nunca se esgota.
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