quinta-feira, 4 de julho de 2013

As vias mágicas do sonho à arte de se transformar

Por Thatiana Verthein



Sentada em frente a essa folha em branco, tentei resgatar na memória qual teria sido meu primeiro contato com a leitura, percebi em meio ao devastador mergulho interior que nunca tinha atentado para isso: qual o primeiro livro que li? Confesso que fiquei um tanto frustrada, pois não consegui lembrar. Concentrei-me e viajei a um tempo em que era engolida por estantes gigantescas de livros sobrepostos em pilhas tortuosas na biblioteca da mamãe. Achava estranho que ela guardasse tanto papel. Atinava se os livros mais altos, inacessíveis a mim, não seriam de certa maneira proibidos por algum motivo. Mamãe era leitora assídua, sempre a vi lendo: lia no quarto, na sala e até no banheiro. Os livros eram uma espécie de prótese, presos no lugar das mãos. Ficava até curiosa do que ela escondia naquelas páginas que devorava diariamente. Contudo, mesmo sem saber ler, eu adorava inventar histórias, a maioria delas de terror para apavorar minhas irmãs mais novas. O encantamento de vê-las acreditar naquela realidade que havia criado, de colocar-lhes medo com personagens que eu mesma construía dentro da minha cabeça, era gozar da magia de existir, de estar no mundo.
Vivia numa sociedade em que as práticas de adestramento das crianças para o futuro mercado de trabalho chegavam a níveis assustadores (qualquer semelhança com o agora, não é mera coincidência). A classe média ancorada numa educação conturbada, na qual as crianças tinham negado o direito à brincadeira, ao sonho da infância. A lapidação dos pequenos por cursos carregados de responsabilidades em detrimento do universo lúdico e com isso, do bem estar físico e psicológico. Tenho imensa gratidão a minha família pela minha formação, sempre fui livre, a leitura nunca me assombrou, não houve cobranças, tudo aconteceu de maneira orgânica, quando me dei conta estava lendo sedenta.
 Recordo a vida recheada de fantasia, era apaixonada pelas histórias de guerra do meu avô João, contos de necessária crueza, regras de sobrevivência, explosões e as sofisticadas estratégias de combate das arrepiantes narrativas. Papai também era um exímio contador de histórias, porém as suas eram mais leves, em geral, aventuras e anedotas da cidade nova, lembranças da casa em que lhe apetecia ver as filhas nascer e crescer. O mais interessante é que toda essa memória afetiva vai se tornando verdade, como se alcançasse, eu mesma, o sabor de ter vivido essas histórias.
Cresci amando aventuras, gostava de acampar, viver próxima à floresta. Decidi então fazer Engenharia Florestal na Rural, um curso que pareceu a primeira vista, atender meu desejo de trabalhar com plantas medicinais, de viver desbravando lugares inóspitos. Em 2004 ingressei na Universidade Rural. Infelizmente, logo no primeiro período tive a sensação de que não era aquilo, embora os professores fossem maravilhosos, os recentes amigos incríveis e as leituras interessantes. Mesmo já tendo tomado minha decisão de abandonar o curso de engenharia, permaneci até 2006 naquele mundo singular. O paradoxo: foi no curso de engenharia minha iniciação na Literatura. Deixe-me explicar melhor, acontece que minha mãe era leitora de filosofia, sociologia, psicologia... E sendo filha de peixe, essas eram também as minhas leituras. Na verdade, foram os Pré-socráticos que despertaram meu interesse pela natureza. Mas quando uma amiga ruralina me emprestou Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquéz, minha vida se descortinou diante dos meus olhos como um filme, tive a consciência aguda do que queria naquela leitura. Na época já pensava infinitas histórias, só pensava. E a partir daquela experiência, comecei a escrever, escrever para reviver as histórias que contava para assustar minhas irmãs, escrever para saborear as histórias de papai e vovô, para sentir a vida com ternura.
Sem a menor estranheza e com a alma profunda renasci no mundo da Literatura, como se estivesse caminhando sonâmbula e de repente pelas vias mágicas do realismo maravilhoso acontecesse o resgate de um desejo adormecido, que morava dentro, algo que eu realmente queria fazer de mim mesma. É claro que na escola tinha ouvido falar de Literatura, porém, estudei em colégios cartesianos, onde o ensino de Literatura era apenas uma ponte para o vestibular. E como minha opção era Engenharia, tive o privilégio (meu pensamento na época) de simplesmente ignorar as matérias que não fossem química ou biologia, minhas específicas. A “vida do lá fora” era muitíssimo mais interessante que a escola, já que lá dentro era tudo tão previsível e sem emoção devido à impetuosa legenda: viver para o vestibular! O melhor seria uma mentira, mas foi assim, eu odiava a escola. Por outro lado, amava ler e tirava ótimas notas, o que fez com que minha mãe não soubesse que eu nunca ia às aulas.
Agora percebo que esse dissabor que tive na época da escola teve certa importância, porque acredito que pessoas que participaram do mesmo sentimento pensaram e desenvolveram, melhor ainda, continuam criando novas formas de trabalhar  com o que amam. O verdadeiro mestre ama o que faz e quando ensina isso fica explícito em seus olhos e gestos. E por mais que os estudantes não tenham tanto afeto por aquela matéria específica, eles podem sentir a gravidade de uma visão holística das disciplinas escolares. E assim a sala de aula transforma-se num espaço de criação e atividades de apreciação. O aprendizado daquele mundo suscita no imaginário do aluno, que se aproxima do professor com prazer, não mais o encarando como um estranho. Nesse processo de identificação, encontra autonomia para aplicar o conhecimento adquirido conscientemente em diferentes contextos. Inserindo esses aprendizados em sua vida prática, instigado pelo potencial de transformação da realidade. O aluno amadurece ao perceber subjetivamente, e em certa medida, construir uma ideia do mundo que está a sua volta.  Interpretar e avaliar criticamente as relações sociais é uma tarefa árdua, mas imprescindível para nossa formação docente, pois é assim que as pessoas interagem entre si e com as coisas que elas encontram, acordo capaz de tornar a troca possível e eternizar o aprendizado que nesse mundo tão rico, nunca se esgota. 


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